Cherreads

Chapter 4 - CAPÍTULO 3

Ontem, Leo havia morrido. De novo.

E dessa vez, foi enquanto dormia.

Era algo que simplesmente…. continuava acontecendo. Sempre.

Ela tentou impedir a lâmina atravessar sua garganta, rasgando a carne, sufocando o grito, enquanto o mercenário mantinha o olhar vazio sobre si. Acima dela, o céu noturno permanecia indiferente à sua dor. Ao redor, a vila miserável, tomada pela fome e pelo medo, se desfazia em fogo e sangue. Famílias dilaceradas, casas consumidas pelas chamas.

Ela implorou para não morrer, até o último segundo.

Agora, naquela manhã fria, a lembrança ardia tão viva quanto a sensação estranha em seu pescoço, que ela esfregava automaticamente, como se ainda pudesse sentir a lança cravada ali.

Explicar essa bizarrice só adicionaria mais um rótulo a si: amaldiçoada, agora louca.

E ‘morrer tantas vezes’, cedo ou tarde, tornava-se algo banal... como acontece com os fracos.

Até parece uma maneira exagerada de se expressar; porém, não há nenhum motivo para se importar mais com isso.

Do que adianta pensar em profecias? Se isso tudo estava previsto para acontecer, porque não morrer com glória? Ou tentando?

Isso mesmo, essa é a forma certa de se pensar. E hoje é 12 de julho, segunda-feira e dessa vez, eu não irei morrer.

Foi o que repetiu para si mesma. Um mantra disfarçado de desejo para acalmar suas ansiedades diante da Cerimônia de Formatura.

Enquanto aguardava seu nome ser chamado, mantinha os punhos cerrados, sufocando a ansiedade que a corroía por dentro.

Porque está tudo correndo conforme o planejado.

Nada poderia dar errado.

Um plano que se tornaria concreto em poucos instantes.

Novamente ela olhou para sua palma da mão, dessa vez coberta por uma luva preta, grossa de caça, virando de um lado para o outro fechando em um punho apertado.

Nada ainda.

Ela tencionou o maxilar.

Mesmo ainda cheia das incertezas que a corroem desde o Despertar.

Ela só precisava esperar.

Talvez se tornar um Arauto fosse uma maneira de dizer que podia ser mais do que uma maldição, que poderia sobreviver a qualquer coisa e ser a mais forte.

O simples pensamento, foi capaz de acalmá-la um pouco e trazer uma caricatura da jovem com o nariz erguido em puro orgulho.

Sim, todo esse azar irá embora quando ela se tornar um Arauto.

— Armando Simone, candidato 340, ofereça sua lâmina e jure seu Credo. — anunciou o novo Anunciário dos Monteiro, envolto em um pesado manto azul-marinho e uma máscara de Runas de Yophielle que cobria completamente seu rosto.

Apesar da pompa, Leonia o conhecia o bastardo egoísta por debaixo do manto como ninguém.

Os Anunciários, devotos da deusa menor - filha de Charia - eram os guardiões dos rituais em terras Monteiro. Viviam entre mosteiros e igrejas, mergulhados em livros, orações e votos de silêncio.

E após Silas Samarone assumir tal posição, entre eles, seu nome passou a ser esquecido entre os demais, assim como seu rosto não deveria ser revelado.

Ela ainda o desprezava. O repúdio era quase um hobby.

Jurar lealdade a Yophielle não o tornava melhor. Não apagava o que fez.

Ele iria se arrepender de cada maldito infortúnio que causou a ela. 

Não, melhor, todos eles.

Ignorando toda a repulsa da jovem mulher e voltando ao contexto dos acontecimentos…

Simone que trajava uma armadura simples prateada de um aprendiz, em toda sua altura caminhou em direção a estrutura semelhante a um palco feito de pedra com cinco degraus na sua lateral.

Ele parecia um pouco nervoso ao subir as escadas, não sabia ao certo se era por ansiedade ou medo, seria comum se não estivesse, afinal diante dele estavam os representantes mais importantes da Ordem Monteiro, ambos os líderes dos Arautos e Cavalheiros, os Anunciários e não menos importante e glorioso, o Arquiduque Carmelius Monteiro.

A Cerimônia de Formatura, conhecida como Ascensão, era o último passo para se tornar um membro da Ordem dos Cavalheiros Monteiro, mais conhecidos como os Arautos.

Diferente das outras ordens conhecidas em Camalia - terra dos audreanos - os cavalheiros e Arautos não são bichos de estimação do imperador — Velgath Oberon — os Arautos prestavam lealdade apenas ao Arquiduque Monteiro e sua linhagem, como a princesa Skylartte.

Veja, se tornar-se um Paladino ou cavaleiro das outras casas até da família real pode parecer uma tarefa difícil; primeiro vem o exame de admissão, depois uns três anos treinando até partir para sua primeira campanha, - estando pronto ou não - e você assumirá algum posto, fim. Mas, acredite, isso não chega perto do que todos esses sobreviventes fizeram para estar aqui.

Em Montreal, os testes dos cavalheiros são difíceis, porém nada impossível. O problema é quando sua ambição se tornar maior e você deseja se tornar um Arauto de Prata.

Mesmo que você se candidate a ser um Arauto, para provar sua aptidão, coragem e audácia, os candidatos passam por anos a fio de treinamento. Alguns começam com 16, outros com 20, e pouquíssimos com menos de 10 anos.

Nesse processo, você pode muito bem morrer tentando entrar, durante o treinamento e mesmo assim não conseguir chegar ao seu objetivo tão almejado.

É sobreviver pelo impensável.

Assim como havia feito a vida toda com sua maldição.

Leo ergueu os olhos em direção ao palco. Simone ajoelhava-se, curvando-se perante os representantes, retirando a adaga de sua cintura e entregando-a ao Anunciário.

Ao lado dele, repousava a Doma de Fogo: um recipiente circular, com base em um tronco torcido e mantido por galhos vivos. No centro, uma chama azulada ardia dentro de uma estrutura de carvalho branco.

A chama parecia... pretensiosa. Como se julgasse os candidatos antes de consumi-los.

O Anunciário ergueu a lâmina sagrada, recitou orações à deusa da guerra Yophielle, clamou forças ao guardião Ignis, e entregou ao candidato uma lâmina ritualística roxa entalhada com escritos e incrustada de pedras . Sem hesitar, Simone fez um corte no antebraço e enfiou-o inteiro na chama azul.

Exatamente isso, por livre espontânea vontade aquele candidato cortou seu braço e mergulhou no fogo.

Esperava-se dor. Gritos. Cheiro de carne queimada. Mas não é exatamente assim.

A Doma de Fogo era uma relíquia viva, oferecida por Ignis — a criatura guardiã das terras de Montreal — não um falso objeto místico que era utilizado para satisfazer o ego dos novatos e o desejo sádico dos antigos.

Segundo os relatos dos veteranos, a relíquia era o que marcava o ‘Acordo Final’, - se esse for o seu maior desejo - um contrato de alma que vincula sua alma e sua lealdade para com o Arquiduque Monteiro.

No entanto, se caso seus votos não forem sinceros, o candidato queimará por inteiro até se tornar pó.

Se seu coração mudar e a traição o marcar, seu corpo irá ruir.

O que em dois séculos até então, não aconteceu.

— Eu Armando Simone, agora, Arauto de Prata diante dos meus pares, sob o olhar de Yophielle e a benção de Ignis, juro minha vida e honra a defender o Arquiducado Monteiro e seus filhos até meu último suspiro. Se minhas palavras forem corrompidas e meu coração se perder, que meu nome seja esquecido e minha alma, destruída.

De pé sobre o jovem ajoelhado, Alphonse Melione atual líder dos Arautos de Prata se pôs diante ao jovem prendendo uma capa azul royal em sua armadura com a insígnia de Montreal em prata: uma criatura com aparência de um lobo branco com quatro olhos pretos, um par de asas de águia enormes abertas, enquanto sua cabeça estava virada para esquerda, e sua enorme cauda com ponta em forma de lâmina fazia uma volta ao redor da sua cabeça como um escudo circular e em direção desse círculo três lâminas afiadas apontavam em sua direção. 

Abaixo, em Caruyliano - antiga língua de Camalia - lia-se:

"Por Montreal. Pelo sangue. Pela glória."

Segundo a história, Ignis era a criatura guardiã dessas terras que em seu estado de vulnerabilidade foi salva por Devian Monteiro, em troca ela lhe ofereceu sua morada como lar para que pudesse proteger não apenas ela, mas todos aqueles que precisavam.

Em seguida foi-lhe entregue uma máscara de prata, também conhecida como Silenzia, tinha feições monstruosas com detalhes de dentes afiados, chifres e até mesmo uma pintura brilhante nos olhos. Elas começaram a ser usadas como uma tentativa de confundir e provocar os Blezens e Hexaregs. Já que a visão de uns é bem debilitada.

Enquanto uns trazem desgraça a Eldria, em meio a glória lunar, os Arautos trazem salvação e o fim, podendo ser tão frios e cruéis quanto qualquer criatura deste mundo.

Silas fechou o pergaminho com os 25 primeiros candidatos e abriu outro onde havia os últimos 20 nomes e entre eles… o dela.

Sua Ascensão. Seu destino.

E, desta vez, ela não iria apenas se submeter ao chamado.

Ela iria provar. Provar a todos, de uma vez por todas, que estavam errados.

Ser um Arauto de Prata era o ápice do orgulho de um cidadão de Montreal.

Não era um título que se herdava, tampouco se pedia — era algo que se arrancava do mundo, com esforço, sangue e vontade.

Ela respirou fundo, o olhar fixo à frente, mas a garganta apertada demais para o silêncio.

— Acho que dessa vez vão servir carne de Potrik… com vinho tinto e aquele molhinho — sussurrou Tamaya ao seu lado, a voz seca, como quem tenta quebrar o peso do momento, mas só o torna mais denso.

Seus olhos ainda estavam inchados do choro.

Ambas sabiam: a noite fora longa demais, e o dia… era o dia que tudo mudaria.

— Assim que isso acabar, vou pegar uma fatia daquele bolo de chocolate e morango na cozinha. Vamos comemorar quebrando a primeira regra como Arautos — acrescentou, empurrando de leve o antebraço dela, o olhar ainda cravado à frente, sem ousar vacilar.

Leo fechou os olhos, balançando a cabeça, sufocando o meio sorriso que quase escapava.

Conversar ali era um risco estúpido, mas estavam escondidas na terceira fileira.

Leo apertou os olhos tentando fingir que não estava participando da conversa ou sobraria para as duas, era arriscado demais agir daquela forma. No entanto ao invés de falar qualquer coisa, a mulher deslizou sua mão esquerda das costas e segurou a da amiga, sem entrelaçar os dedos como uma maneira de confortá-la, como se dissesse:

"Tudo bem, quando tudo isso cair, vamos comer toda carne e beber todo vinho até desmaiar".

Tamaya apertou de volta, com a mesma força contida.

E se calou.

Leo respondeu com um discreto sorriso e voltou a focar.

Rugh já atravessava para o outro lado da formação, a capa e a máscara de Arauto reluzindo, como um símbolo vivo do que todos ali queriam — ou temiam.

O próximo candidato foi Tamaya. Ao ver sua amiga tentar sorrir em meio a tanta infelicidade do dia anterior, Leo jurou para si mesma que a levaria em alguma confeitaria de Montreal, para comer o que quisesse.

Com a saída do braço dela ileso da Doma de Fogo , Leo olhou novamente para Alphonse Melione - o atual líder dos Arautos de Prata e a Sombra do Arquiduque Monteiro, sua pele preta era dois tons mais escuro que a dela, sua cabeça raspada estava coberta com um capuz branco, lâminas estavam presas em suas vestes. Sua boca estava coberta com uma máscara de metal em formato de dentes um lobo faminto.

Vê-lo à sua frente aumentava sua ansiedade, ele foi uma de suas maiores inspirações. Um garoto que chegou aos 12 anos no arquiducado e assumiu tal posto aos 16 anos e hoje com quase 35 ninguém foi bom o suficiente para desafiá-lo.

Contudo, isso logo irá mudar.

Assim que o novo Arauto saiu, chegou sua vez. Era uma das últimas a serem chamadas. Neste ano houve um total de 82 candidatos, 25 faleceram, 37 sobreviveram, mas ainda sim a sua numeração de chegada se mantém mesmo que não tenha sobrevivido. Uma maneira de homenagear aqueles que chegaram próximo a seu objetivo.

Na formação de Leo os candidatos foram os únicos não chamados 391, 392 e 393, já que padeceram durante o treinamento.

Ninguém sobrevive apenas com força de vontade.

Viver e morrer eram palavras entrelaçadas aqui — e o mínimo que se podia fazer era se equilibrar entre elas… e sobreviver delas.

Talvez não fosse a hora deles, mas foi a escolha deles.

Por isso, passar pela Ascensão e estar vivo para a formatura era um feito digno de orgulho.

Entre todas as histórias que se cruzavam ali, a mais improvável de estar presente… era a de Leo.

— Leonia Bellius, candidata 399.

A voz firme a trouxe de volta. Ao ser anunciada, Leo endireitou a postura e ergueu a cabeça com orgulho, os braços posicionados para trás e a expressão mais séria que conseguiu conter — apesar da empolgação que fervia por dentro.

Aquele era o momento que esperava há 14 anos — assim como seus companheiros Ryun,Célia e Armando Simone, que já haviam recebido seus novos cargos como Arautos de Prata.

Se existiam mesmo fenômenos cósmicos que determinavam o destino, então, com certeza, aquele capítulo de sua história estava escrito como o mais…

— Reprovada.

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