Um dos grandes problemas do último teste para se tornar Arauto de Prata, é que despertar a própria Aura pode consumir alguém por inteiro.
Alguns são dilacerados de dentro para fora. Outros... simplesmente explodem.
Era um risco que todos ali estavam dispostos a correr.
Anos de treinamento prepararam corpo e mente — mas a verdade é que nem sempre as coisas saem como se espera.
Uns morrem.
E outros despertam uma Aura capaz de rivalizar com o M ana de um Calamiti.
Muitos dos presentes no recinto já a exibiam sutilmente as suas, seja testando reflexos com arremessos de facas ou saltando de um local a outro sem serem facilmente notados.
Segundo Eren Belalvo, no livro Análise do Conceito de Alma, Corpo e Aura, os descendentes de Charia despertam poderes que refletem a essência do seu ser.
Geralmente, são aprimoramentos físicos — resistência, imunidade, velocidade, furtividade.
Há casos ainda mais raros, como o da própria família Monteiro, que desenvolveu e refinou sua Aura ao ponto de dominar um elemento.
O primeiro dessa linhagem, Devian Monteiro ficou conhecido por sua habilidade com a terra.
O atual arquiduque, Carmelius, consegue criar e moldar gelo e neve.
Neste ano, em especial, muitos aguardam ansiosamente para saber qual será a habilidade despertada pela última descendente: Skylartte Monteiro.
Diferente dos demais, a senhorita Skylartte não treinou com os outros candidatos, nem teve contato com os Arautos novatos.
Ela é uma princesa arquiducal, claro — e, por segurança, estava previsto que só seria apresentada aos Arautos e à sociedade Eldriana ao completar 20 anos.
Uma grande bobagem, na perspectiva de Leo.
Olhando para a própria mão envolta na caneca, Leo tentou pressionar com força suficiente para amassar o metal, apertando até sentir a palma protestar em dor.
Pelo visto, dessa vez não foi superforça.
E onde estavam os tais fios eletrizantes que deveriam puxá-la? A queimação que tantos descreviam?
Dentro de si, tudo permanecia em um silêncio morto.
Nada.
Nenhuma fagulha, nenhum sinal.
Ela não devia estar ali.
Talvez sua aura estivesse se reformulando ao novo tamanho… ou tirando um cochilo.
E se sua aura fosse fraca? Patética, até?
Não, não agora.
Não era hora para esse tipo de pensamento — não quando estava tão perto.
Outros haviam morrido para que ela estivesse ali hoje. Para que ela pudesse seguir adiante e cumprir o que eles não poderiam.
E ainda assim, parte dela queria gritar com os deuses, com os instrutores, com a sala inteira.
Queria quebrar o maxilar de quem dizia que ela não merecia aquilo.
Por enquanto, só mastigava sua angústia — com a mesma força que esmagava a caneca.
— Eu já conheci a Leo da primeira à quinta dose… mas a da sexta… essa é outra história — comentou Tamaya, surgindo ao lado dela com a naturalidade de quem chega para salvar a cena.
Alta, com os cabelos curtos trançados rente ao couro cabeludo e a pele negra reluzente sob a luz quente do salão, Tamaya deslizou um prato de carne assada com arroz e salada até a amiga.
O cheiro era irresistível, e o estômago de Leo protestou alto.
Estava tão ansiosa com a Cerimônia de Formatura — e tão confusa com seu próprio Despertar — que sequer havia comido nas últimas horas.
Ela nem mesmo conseguiu oferecer algo aos mortos, como poderia se juntar aos outros e suas honrarias?
— Vai comer ou vai desprezar quem te trouxe comida? Minha mãe te chamaria de mal-educada — pontuou Tamaya, firme, com aquela expressão que não deixava espaço para recusa.
— Ah, não… definitivamente não quero ser repreendida por Magna — Leo cedeu, puxando o prato e levando à boca uma garfada generosa.
Só então percebeu o quanto estava faminta. A carne macia, suculenta, com um aroma levemente apimentado, a envolveu por completo. Olhou para Tamaya com uma expressão quase cômica, como quem perguntava: “O que tem aqui?”
— Carne de veado, com um molho verde que tô criando. E aí? Ficou bom? — perguntou Tamaya, já sabendo a resposta, o orgulho estampado no rosto.
— Não precisa dizer nada… tá quase lambendo os dedos — riu, ao ver a amiga com os lábios manchados de molho, parecendo uma criança descobrindo um novo sabor.
Leo limpou a boca com um guardanapo de pano e tomou mais um gole da cerveja já morna.
Não estava bêbada, como sua amiga provavelmente pensava. Mesmo com aquela quantidade, parecia ter a mesma resistência de Revian, o guarda minotauro.
É, talvez sua Aura seja ‘Alta resistência ao álcool.’
Muito útil.
Sobretudo numa briga de taverna.
— Você tá bem? — Tamaya perguntou. A voz carregava uma mistura de preocupação e descontração forçada.
Por um instante, a madeira do banco rangeu sob o movimento de Leo.
Depois de tudo que haviam passado, qualquer momento de paz deveria ser motivo de alegria — não uma desculpa para lembrar do que (ou de quem) ficou para trás.
Antes de responder, Leo olhou ao redor.
Viu os rostos conhecidos, aqueles que estavam com ela desde o início.
Mas também notou lugares vazios.
Quando entrou na sala e os viu ali, vivos, servindo-se de carne e cerveja, sentira alívio.
Por estar viva.
Por eles estarem vivos.
Mas não era fácil.
Seus parceiros um dia podem e irão morrer, carregue esse peso como uma mortalha em suas costas.
— Acho que é difícil dizer algo assim hoje… — ela começou, a voz baixa. — Talvez “estar aqui” já signifique alguma coisa.
Tamaya se inclinou sobre a mesa, deslizando os dedos pela borda da caneca.
— Acho que sim.Sabe, eu não sou uma boa espadachim ou coisa assim...Mas o Inácio teria adorado provar isso aqui — disse, apontando para o prato.
Leo permaneceu em silêncio. Reconhecia a tentativa da amiga de buscar consolo em algo familiar.
— Prometemos que... se nos encontrássemos no jantar de hoje, iríamos cozinhar juntos... — Tamaya apertou os olhos, mordendo os lábios trêmulos numa tentativa falha de conter a emoção.
— Eu sei que... que não devemos esperar que o outro volte depois da cerimônia… — sua voz falhou. — Mas eu juro que tentei. Acreditava que ele estaria aqui agora.
Tamaya desabava lentamente, escondendo o rosto entre as mãos.
Leo apertou seu ombro, firme, num gesto mudo de consolo.
Não se apegue. Não faça amizades. Não sejam “um só”.
É a primeira lição que se aprende aqui.
Candidatos a Arautos nunca devem depender de suas duplas. Muito menos esperar por elas, como “sugerido” no treinamento.
Mas é difícil viver uma regra que te nega até o direito de ter esperança.
Honrar os mortos é ainda mais doloroso quando você se apegava.
Ambos não eram exatamente um casal — ou algo do tipo, pelo que sabia. Estavam mais para dois irmãos de alma. Vieram para cá juntos quando crianças, cresceram e treinaram lado a lado. Inácio era um excelente espadachim, tanto quanto Leo com as lâminas. Nas madrugadas de quinta-feira, enquanto treinava, Leo o encontrava jogando adagas em alvos e acabava se juntando a ele.
Não chegaram a ser amigos, ou qualquer coisa, apenas simpatizavam com o mesmo desejo.
Estar aqui hoje.
Pelas habilidades que tinham, ambos deveriam estar vivos. Mas apenas um estava ali para contar a história. Afinal, ela sobreviveu — por algum milagre, diga-se de passagem.
E agora, tudo o que tinham... era isso.
— Ele devia estar aqui... — murmurou, quebrando o silêncio pesado. Sua voz não carregava raiva, apenas uma tristeza que cortava como lâmina afiada.
Engolindo em seco, procurou as palavras certas para sua amiga.
— Então... vamos comer por ele. Acho que, onde quer que Erno o tenha levado, ele ficaria decepcionado em saber que você ainda não comeu nada que ele preparou — disse Leo, com olheiras marcando seu rosto jovem. Mas ela sorria. Não de alegria, e sim de quem ainda tentava acreditar que realmente havia passado pelo Despertar.
— E beber. — levantou a caneca. — Certamente, beber por ele.
Palavras de conforto nunca foram o forte de Leo. Não entendia muito bem a dor da perda, já que nunca havia perdido alguém tão próximo. Sempre manteve uma distância confortável de todos. E mesmo dizendo que não sentia nada... no fundo, desejava que eles ainda estivessem ali, que tivessem chegado juntos até esse momento.
O que os tornava menos dignos do que ela?
Do outro lado da mesa, um homem mais velho se aproximou carregando uma tigela nas mãos trêmulas. Devia ter uns 28 anos — idade avançadíssima, considerando a média de sobrevivência dali. Cabelos desgrenhados, uma cicatriz fresca na testa. Pelo pouco que lembrava, chamava-se Mariano. Sentou-se pesadamente no banco à sua frente e, como se tivesse escutado toda a conversa (provavelmente escutou mesmo), disse:
— Sobrevivemos. É isso que importa agora.
Parecia mais uma tentativa de autoajuda fracassada do que qualquer sentimento genuíno.
Seus dedos calejados estavam sujos de terra e sangue seco. Tinha ido caçar com os outros, mas claramente não achou necessário se limpar antes do jantar. Compreensível. Um banho, naquele contexto, era quase um prêmio de consolação. E, convenhamos, o Despertar puxava os demônios de cada um.
— Devia parar de se apegar aos mortos... ou vai continuar chorando todo dia. — acrescentou, com a sensibilidade de um tijolo, enquanto segurava uma coxa de frango com as mãos sujas.
Incrédula, Leo sentiu a respiração pesada de Tamaya ao seu lado — raiva fervendo.
— Vai à merda, Serqueira! — Tamaya, que até então queria apenas um momento de paz, explodiu, derrubando a caneca dele no chão e saindo abruptamente da mesa.
Leo pensou em chamá-la, mas… conhecendo Tamaya, era melhor deixá-la sozinha por um tempo.
— Uma pena. Essa também estava gelada — comentou ele, pegando a caneca do chão e bufando, como se o maior crime da noite tivesse sido desperdiçar uma bebida fria.
Virou-se para Leo:
— Se for jogar alguma coisa no chão, que não seja meu prato. Diferente de alguns, eu cacei a carne que está nele.
Ela ignorou. Não porque concordava com ele, mas porque estava cansada demais para se abalar.
Ceder seria o mesmo que aceitar a "verdade" dos outros.
E isso... poderia levá-la à própria ruína.
E, no fim… qual caminho não levava?
*****
No canto do salão, um pequeno grupo tentava se aquecer junto ao grande braseiro. A chuva começava a tamborilar contra as janelas estreitas, enquanto trovões distantes lembravam que o mundo lá fora continuava impiedoso — como sempre.
O encerramento dos testes pairava no ar como uma nuvem espessa de incerteza, criando uma mistura desconfortável de medo, ansiedade e um toque generoso de depressão coletiva.
Uma brisa fria ousou brincar com as longas tranças de Leo. Bocejando de cansaço, ela puxou seu segundo casaco, enrolando-se como um burrito melancólico. Aquilo não era um bom sinal.
Todos pareciam moribundos e quase bêbados, despreparados o suficiente para não aparentarem serem futuros Arautos.
A noite soprava ventos cortantes do lado de fora, e, um por um, os candidatos sobreviventes despediam-se dos mortos jogando suas canecas vazias na lareira — em um ritual silencioso e improvisado. Era simbólico. Um tributo mudo. Talvez inútil. Mas bonito o suficiente para dar algum sentido à tragédia.
Mariano foi o primeiro a se levantar, saindo da mesa sem uma palavra. Ele parecia pouco interessado em interações — o que talvez fizesse dele o mais sensato ali. Não havia perdido ninguém, aparentemente. Mas ainda assim prestou homenagem. Por empatia? Por educação? Pela comida? Vai saber. A essa altura, até um pão duro parecia motivo legítimo para sentimentalismo.
Então, em meio ao ar pesado de luto contido e álcool, o silêncio foi espancado — quase literalmente — por um soco seco na madeira. A caneca de Leo transbordou instantaneamente com o impacto violento.
Brukk havia chegado. Porque é claro que o orc faria uma entrada digna de um tumulto.
Leo nem se deu ao trabalho de parecer surpresa. Já os outros na mesa pareciam prontos para socar a cara dele. Era uma reação compreensível.
— Dessa vez eu não perderei, Thalion! Eu te desafio a experimentar o Fogo das Profundezas! — bradou Brukk, voz alta e quase rouca, ecoando pelas alas mais distantes da Grande Casa. Seu entusiasmo beirava a loucura, e sua obstinação sugeria que ele havia confundido o salão com uma arena.
Se fosse ontem, todos seriam arrastados para as Torres e devidamente punidos. Mas hoje... ainda eram apenas candidatos.
O silêncio da sala, antes sagrado, agora se transformava num campo minado de tensão emocional. E entre tentar dormir e beber, adivinhe qual escolha prevaleceu? Exatamente.
A bebedeira coletiva incluía, é claro, os novos guardas e cavaleiros de Montreal. Ao contrário dos testes quase suicidas dos Arautos, para ser um guarda ou patrulheiro as chances de sobrevivência eram maiores, fora que até mesmo os Demerianos podiam conseguir um cargo entre as linhas do arquiducado.
Demerianos eram cidadãos oriundos de Demeria, as Terras do Outro lado, filhos de Rheos e que possuíam uma gama maior de espécies. Entre elas fadas, demônios, sereias, minotauros e entre outros.
Um lugar que foi devastado após o “Grande Massacre”. E nenhuma rota de volta para aquele lugar foi descoberta — ou permitida.
Claro, era arriscado abrigar Demerianos em suas terras com o Imperador caçando, escravizando e matando a todos que encontrava.
Mas, a jurisdição e o acordo entre Camalia e Adária estabeleciam que se um Demeriano assumisse outra cidadania e tivesse um ‘Dono’ — um cidadão que o comprasse e assumisse responsabilidade — ele podia viver em paz. Ou algo parecido com isso.
Outro detalhe importante: Demerianos não podiam ser Arautos.
A razão? Magia.
A Magia fazia parte da essência deles, algo que nascia com o indivíduo, integrando corpo, mente e alma. Capaz de moldar músculos, mente e até manifestações espectrais, a Magia os tornava únicos... e incompatíveis.
Sendo assim a Magia está presente desde seu nascimento e o tamanho dela não irá se alterar até sua morte, ou seja, você nasce poderoso ou não.
Já a Aura, por outro lado, era exclusividade dos descendentes de Charia — os Audreanos. Uma extensão da alma, que podia ser treinada, expandida, aprimorada. Aos 55% você pode manipular um pouco os elementos.
Entre os cavaleiros — não Arautos — estavam dois amigos de Leo: Brukk, o orc volumoso e emocionalmente instável, e Thalion, o elfo do vento, elegante e constantemente irritado com as explosões dramáticas do primeiro.
— Você não faz o menor sentido, Brukk... e olha que só bebeu UMA caneca. - enfatizou - Tem certeza que quer propor um desafio? — questionou Leo, com o cansaço estampado na voz.
De canto de olho, ela viu Tamaya retornar à mesa, respirando fundo e esfregando a testa com dois dedos — o sinal universal de "eu não tenho paciência pra essa palhaçada hoje."
— Amigão, nenhum de nós tem força pra te carregar até o sétimo andar... então, assim, só uma dica: contenha a empolgação.
À sua direita, Rugh se sentou com tranquilidade. O cabelo liso preso num coque bem feito, a pele bronzeada refletindo o amarelo da lareira, e aquele sorriso de quem já viu coisa pior, mas ainda assim tenta parecer gentil. Ele era um ano mais velho que Leo, mas a maturidade e os modos do candidato davam a ele a aura de um tutor cansado de um grupo caótico.
E ele estava certo, Brukk era o maior entre eles e o mais corpulento, quase como uma parede de pedra azul cinzenta. O que ele não tinha paciência, compensava em músculos e uma lealdade sem fim a esse pequeno grupo.
— É claro que tenho! — respondeu Brukk, empolgado. — Desde quando eu não tenho certeza dos meus planos?
— Posso citar vários momentos. Em janeiro, por exemplo, quando decidiu arrancar a cabeça de um hexaregue vermelho, sabendo perfeitamente que a criatura se regenerava em segundos. Ou da vez que você mandou...
Ah, certo. Leo não estava presente. Só ouviu os relatos depois — e, honestamente, já era o suficiente.
— Cala a boca, Stughri. Eu não pedi seu parecer. — resmungou Brukk, apontando com irritação.
— Como quiser. Só não me faça voltar da próxima missão coberta de fluidos estomacais. Passei uma semana tentando tirar aquele cheiro do meu cabelo. — retrucou ela, com nojo real estampado na voz. Se olhar matasse, Brukk já estaria no chão.
— Ei, Bellius, e você? Vai ficar namorando essa caneca até quando? Sua cerveja já deve estar quente — provocou Rugh, posicionando-se à frente dela, à direita de Tamaya. Sua voz firme quebrou o devaneio de Leo, que parecia ter se perdido nos próprios pensamentos.
Para não deixar transparecer mais do que devia, ela esboçou um sorriso torto, de canto de boca, e rebateu com desdém:
— Estou só esperando você parar de falar e finalmente cumprir seu desafio.
— Ah, é isso que quer ver? Então segura essa!
— Ei, espera aí! Esse desafio não era meu? — interrompeu Thalion, empolgado — Eu é que vou ganhar isso aqui!
Sem mais enrolação, os três amigos ergueram as canecas ao sinal de Rugh. Num só movimento, viraram o conteúdo dourado garganta abaixo, sob os olhos atentos e risonhos da plateia ao redor. Um, dois, três goles... As canecas vazias bateram com estrondo na mesa.
Thalion e Brukk, com os rostos avermelhados e os olhos semicerrados, estavam afundados nas cadeiras, os corpos tombando como se a gravidade tivesse aumentado só para eles. Entre um arroto e outro, pareciam à beira do desmaio.
Rugh, por outro lado, imperturbável, já descia o décimo copo como se fosse água.
As garotas trocaram olhares surpresas, espantadas com a resistência dele.
— Mas... qual é o seu segredo?! — perguntou Tamaya, quase rindo.
Rugh limpou os lábios com o dorso da mão, deu uma piscadela maliciosa e respondeu com um ar de mistério:
— Se eu contasse, teria que dividir a vitória.
As risadas ainda ecoavam pela taverna, abafadas pelo som das canecas e das conversas cruzadas. Mas Leo, apesar do sorriso breve que dera antes, voltava a mergulhar no silêncio que a envolvia como uma névoa espessa.
Brukk soltou um grunhido e, com o corpo mole, tombou de lado sobre a mesa com um baque surdo, arrancando risos dos que estavam por perto.
— Brukk caiu — murmurou Thalion, cambaleando ao tentar se levantar, os olhos semicerrados. — Acho... que ganhei?
— Ganhou foi uma dor de cabeça pra amanhã..Quer dizer elfos sentem dores de cabeça? — interrogou Rugh, rindo e se levantando também. Ele olhou para os dois companheiros, balançando a cabeça com bom humor. — Vou levar esses dois para o dormitório antes que acordem no chão.
Ele se aproximou de Brukk, apoiando o amigo pelos ombros, pedindo para Thalion ajudá-lo, enquanto se virava para Bellius com um olhar mais leve, porém atento:
— Não demorem muito. Principalmente você Bellius - seus olhos castanhos escuros a olharam de cima a baixo, como se pudesse ler seus pensamentos - a cerimônia não será a mesma coisa sem sua cara emburrada por perto.
Ela assentiu com um sorriso discreto.
—Você precisa lidar com minha beleza uma vez por dia, para que possa sobreviver Madeleo.
— Ah, Tamaya... — Rugh virou-se brevemente, como se tivesse lembrado de algo importante — Você ainda não contou qual foi a habilidade que conseguiu depois de despertar a Aura.
Tamaya sorriu de canto, cruzando os braços e inclinando levemente o corpo para frente, como quem aprecia o suspense que está prestes a criar. Seus olhos brilharam, e ela lançou um olhar cheio de malícia para Rugh:
— Amanhã você verá, bonitão.
Ela então virou-se para Leo, que virou a cabeça para ao lado como se não tivesse mais interesse no assunto em que ambos estavam conversando.
Tamaya se aproximou um pouco, com a mesma curiosidade:
— E você, Leo? Vai contar pra gente?
Mesmo acuada, ela manteve ao máximo sua calma. Um aperto silencioso fechou-se em seu peito. Não queria falar sobre aquilo, não agora. Não quando nem ela mesma tinha certeza do que havia acontecido.
Respirou fundo, tentando encontrar uma resposta, mas apenas desviou os olhos, sussurrando:
— Prefiro esperar pelo amanhã…
O silêncio pairou brevemente sobre a mesa, e Rugh, percebendo a tensão, assentiu, como quem entende que há batalhas que precisam de tempo.
Aquilo foi a deixa para Thalion, ainda meio zonzo, aos soluços resmungar:
— Acho que... eu vou indo também…
E então, com a ajuda de Rugh, começou a sair dali, apoiado no amigo.
Certo, amanhã ela, Tamaya e Rugh se tornarão oficialmente Arautos de Prata;
Ela forçou um sorriso, apenas acenando com a cabeça, e observou enquanto Rugh guiava os dois quase desmaiados para fora do refeitório.
Agora quase sozinha, com o burburinho ao redor parecendo distante e abafado, Leo voltou a encarar sua mão.
Nenhuma resposta.
O vazio era estranho, incômodo. Como se algo dentro dela houvesse se rompido — ou pior: estivesse se apagando lentamente. Sua mente, geralmente afiada, parecia envolta por uma névoa espessa e fria, onde pensamentos vagavam soltos, sem forma. A ausência da Aura não era apenas uma falha. Era um aviso. Um presságio.
Ela cravou as unhas na palma da mão, como se quisesse agarrar algo que escorregava pelos dedos invisíveis do destino.
— Você está bem? — Tamaya perguntou outra vez, com suavidade.
Leo piscou, voltando à realidade. Forçou um sorriso cansado, que não alcançava os olhos.
— Só... cansada. Acho que preciso descansar um pouco.
Tamaya assentiu com leveza, sem insistir.
Leo se levantou com movimentos comedidos, quase cuidadosos, como se temesse que qualquer passo em falso a deixasse ainda mais vulnerável.
— Vou subir. Quero estar inteira amanhã. — disse, com a voz baixa.
E então se afastou, atravessando a porta que levava ao corredor. A madeira rangeu sob seus pés, e o som alegre do refeitório foi ficando para trás, abafado.
Do lado de fora, o vento uivava, como se aumentasse suas inseguranças. Eles se despediram com acenos curtos e palavras contidas, cada um perdido em seus próprios pensamentos. A noite a envolveu quando saiu do refeitório, levando consigo a incerteza do futuro e a esperança tênue de que, no final, tudo valeria a pena.
Dizem que ao nascer, seu destino já foi escolhido pelos deuses.
E Leo acreditava que todas essas dificuldades e essa claustrofobia que a cercava, tinha um propósito, um motivo maior.
Aquilo iria fazê-la prosperar.
Amanhã, nada iria dar errado.