Cherreads

Chapter 2 - PARTE I “Esse mundo te deixou pra morrer”.

CAPÍTULO 1

Para Despertar, você precisa queimar.

Essa é a última coisa que você escuta antes de se perder em um vazio tão grande quanto a morte.

E, para ser honesta, Leo não se lembrava de ter queimado, de ter gritado, sentido dor ou algo que realmente marcasse — apenas que conseguiu respirar mais uma vez.

O que não foi o caso de outros 25 candidatos, este ano.

É insensível pensar nisso com tamanha leveza, mas tudo é uma questão de escolha. E, de qualquer forma, não havia como evitar.

Ela virou o resto da bebida em sua caneca, o líquido descendo queimando a garganta, fazendo-a lacrimejar como uma novata desacostumada à cerveja de cereja.

O cheiro da carne assada a atraiu diversas vezes, mas Leo se recusou a ceder à tentação.

Quando um candidato não passa em seu último teste — o Despertar —, é tradição entre os sobreviventes honrar suas almas com bebidas extremamente fortes e uma boa caça.

E, como nas vezes anteriores, Leo não obteve permissão para ir além dos muros, por ordens do Arquiduque Monteiro.

Carmelius provavelmente a detestava — ou algo próximo disso —, para impedi-la até mesmo de caçar. Era vergonhoso ser tratada como uma criança em um momento como aquele.

Tudo por causa da maldição.

Pelo visto, viveria presa em Montreal até os cinquenta, isso se estiver viva até lá.

O refeitório da Grande Casa era amplo, o teto alto era sustentado por vigas escuras de carvalho e iluminado por tochas presas às paredes, cuja luz tremulante lançava sombras que se contorciam sobre as mesas de madeira rústica e o mármore frio.

O ar ainda carregava o cheiro de fumaça e de carne recém-assada, misturado ao odor de suor e cerveja.

Os candidatos sobreviventes entravam em pequenos grupos, passos arrastados ecoando pelo salão. Bandagens cobriam cortes e hematomas; nos olhos, o peso do trauma — quase como se ainda estivessem presos ao momento em que quase morreram.

O cansaço e o luto pairavam, densos como a fumaça agarrada às vigas.

Leo ficou sentada em silêncio, mas não passou despercebida.

 Conforme os grupos se aproximavam das mesas, vozes sussurradas começaram a se erguer, afiadas como lâminas mal disfarçadas:

— Ela nem devia estar aqui.

— Mal saiu dos muros e já acha que pertence a nós.

— Conseguiu o quê no Despertar? Respirar?

As palavras não eram ditas diretamente a ela, mas estavam próximas o suficiente para que não houvesse dúvida de quem era o alvo.

Leo desviou o olhar de canto, observando entediada, as bocas que se moviam e os olhares enviesados — todos mal disfarçados, como se fossem bons nisso.

A irritação latejou, mas ela manteve a expressão inabalável. 

Não era culpa dela não ter sangrado como eles.

Não foi ela quem escreveu essas regras absurdas.

Mas ali estava, pagando o preço por um privilégio que nunca escolheu.

E de uma coisa ela sabia:

Não podia ser fraca.

Não podia ser inútil.

Não são muitos que conseguem passar. Apesar de todo o suor, da devoção, da crença estúpida… o destino não é gentil. Nem justo.

Se estava aqui hoje, é porque superou todos os outros mesmo carregando a porra de uma maldição.

Eu estou viva, eles não.

Eu estou bebendo cerveja ,eles não.

Do outro lado da sala, seus novos “companheiros” — os ilustres Arautos — lançavam-lhe olhares meticulosos, como se tivessem autoridade — ou competência — para decidir quem merecia sobreviver e quem deveria ter morrido na cerimônia.

Patético.

Não que Leo desejasse o mal a eles. Nada tão banal.

Só não os suportava. Especialmente o grupo de Giovani, que fazia questão de não disfarçar a antipatia.

Um deles apenas parou de beber só para lançar-lhe um olhar julgador.

Como se seu mérito não fosse real.

Porque para eles, ela não era digna.

Leo não baixou a cabeça, apenas ergueu a sobrancelha, devolvendo silenciosamente.

E para ela, eles também não.

Haviam pessoas muito melhores que ele que deveriam estar ali.

Mas, infelizmente, não são eles que decidem. Só os deuses — ou quem quer que esteja se divertindo com tudo isso.

E os olhares continuavam. Um, dois, todos… Ridículo. Tão previsível que quase dava vergonha alheia. Ter toda essa atenção indesejada… Leo bufou. 

Pelo visto, já era uma celebridade local — reconhecida e comentada — antes mesmo de oficialmente se tornar um Arauto.

Nos seus planos mais cruéis, pretendia arrancar um olho de cada um só para ter seu momento sem tantos transtornos - quem sabe assim aprenderiam a usar a boca com mais sabedoria. Ou, melhor ainda, fechá-la de vez..

Mas a tarefa vinha se mostrando mais pesada do que imaginava.

Respirando fundo, preferiu se abster de comentários.

Leo poderia ser uma excelente espadachim, letal no combate corpo a corpo — todos sabiam disso.

Mas, mesmo agora prestes a assumir a função de Arauto de Prata… seria possível confiar em si mesma na Floresta dos Condenados?

Da última vez, provou-se pouco mais que um peso morto. Um erro que custou a vida de outro.

— Protegida do Arquiduque... isso sim.

— Enquanto a gente sangra, ela assiste de camarote.

Leo quis rir. Um riso seco, enviesado.

Mas, no fim das contas, uma pequena parcela daqueles comentários estava certa: ela continuava numa jaula — protegida dos Hexaregues e dos Blezens, como um animal raro, mantido a salvo… ou sob vigilância.

Quase como uma princesa presa na torre.

Talvez tivessem poupado o esforço de odiá-la tanto por algo que ela também desprezava.

Virou o rosto para o outro lado.

Ironia ou não, aquilo não a levaria para lugar nenhum.

O que importa é o agora.

Em meio ao silêncio, a voz de conhecidos íntimos soava como um tranquilizante para seus pensamentos — não que fizesse ideia do que eles diziam.

Porque pessoas com quem ela treinava morreram hoje.

Morreram confiantes de que estariam vivos agora.

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